Por Marcos Guerra
Aproveitando o espaço da generosa iniciativa do Coletivo Paulo Freire, associo-me ao material coletado, como uma das “100 vozes de corações e mentes”. Desejando enfatizar a absoluta prioridade atribuída pelo mestre e amigo Paulo Freire ao binômio “alfabetização e cidadania”.
Com ele aprendi desde cedo porque dar prioridade à alfabetização de Jovens e Adultos. Uma clara opção política inadiável pela cidadania, a qual mais tarde Betinho carimbou com seu slogan “quem tem fome, tem pressa”. Trabalhamos juntos em Angicos no ano de 1963, laboratório experimental que ficou conhecido como as “40 horas de Angicos”, da qual fui coordenador, além de outras frentes no Rio Grande do Norte, até à brutal interrupção pelo Golpe de 1964. No exílio, nos encontramos em múltiplas ocasiões, antes da retomada dos contatos quando voltamos ao Brasil. Com maior frequência quando ambos vivíamos em países vizinhos, ele, na Suíça e eu, na França. Já quando fui para um segundo exílio na África Negra, ele e D. Elza nos hospedavam em seu apartamento de Genebra, por alguns dias, quando retomávamos nossas conversas.
Lembro-me perfeitamente quando foi para o MEC, a convite do Presidente João Goulart, como recusou a proposta do então Ministro da Educação, de alongar a escolaridade inicial de forma a cobrir os conteúdos de pelo menos as 3 primeiras séries do então curso primário, hoje chamado de ensino básico. Recusou e convenceu, advogando a necessidade de incluir no menor espaço de tempo um número maior de brasileiros, assegurando-lhes o básico, e confiando na criação em seguida de novos caminhos que lhes seriam propostos para continuar a escolaridade, ou até mesmo criados por iniciativa própria, uma vez motivados. Daí o “grande perigo” que representou para os setores dominantes, cuja repressão violenta e imediata parece ainda hoje inexplicada. Como permanece inexplicado o abandono pelo MEC, até hoje, de iniciativas similares. No MEC, o Programa Nacional de Alfabetização criado por Decreto em janeiro de 1964 foi extinto em 14 de abril do mesmo ano, um dia antes de sua posse, por exigência de Castelo Branco.
Em Angicos, na época, o “curral eleitoral” de menos de 1.000 eleitores, recebe de repente 300 novos eleitores conscientizados. Resultado que levou o chefe político do partido do Governador Aluízio Alves em Mossoró a recusar que abríssemos círculos de cultura naquela cidade, gerando a necessidade de uma negociação entre ambos para que pudéssemos atuar na 2a. Cidade do Estado do RN.
Parece fácil e natural identificar os pontos positivos que resultam do pleno exercício da cidadania que resgata a dignidade humana, contribui para a igualdade de oportunidades, e tantos outros que incidem na vida de cada um e do conjunto de uma sociedade sem excluídos.
Não podendo atuar no Brasil, Paulo Freire foi convidado por governantes lúcidos e conscientes destes direitos e seus resultados positivos, para orientar políticas educacionais em países africanos saídos então há pouco da colonização portuguesa, como na América Central e até países asiáticos, além da contribuição a Universidades norte-americanas e europeias.
Inexplicavelmente parece mais difícil avaliar com clareza o que representam as limitações resultantes de ser analfabeto nos dias de hoje. Tanto que são raras as iniciativas públicas e privadas para resolver em definitivo tais lacunas. Deixou de ser tema de promessas eleitorais desde quando os analfabetos votam. Mas o cotidiano dos milhões de analfabetos marginaliza milhões de brasileiros, limitando-lhes um melhor acesso ao mercado de trabalho, a serviços públicos, e múltiplas atividades das quais não podem participar ou usufruir.
Há décadas não temos nenhuma política pública exitosa e responsável, que ofereça serviços efetivos que mudem a situação. Isto quando sabemos que soluções existem, assim como métodos e técnicas disponíveis, baratas e exitosos, – desde que exista também a vontade política, e sejam reunidas condições mínimas para implantar atividades em escala suficiente para mobilizar largos setores da sociedade, já que não restam dúvidas sobre as vantagens de uma atividade de massa, mesmo numa microrregião.
Mas os governantes preferem claramente a alternativa existente. Um eleitorado dócil, sem maiores exigências, sem criticidade, mais facilmente manipulável. Agora manipulado também através de “fake news”, até mesmo em discursos oficiais de autoridades no poder. Fica-me a convicção de que se trata não de omissão, mas de escolha deliberada.
Além do crime de lesa-cidadania, termos de um lado uma população a-crítica e de outro lado um governo livre da necessária crítica que resultaria de uma população conscientizada, tem seus custos econômicos. Como temos mais de 30% de analfabetos com mais de 10 anos de idade, numa população de 200 milhões, isto representa uma altíssima percentagem de marginalização, com dificuldades de acesso à inclusão diante das oportunidades econômicas e financeiras.
Um dado alarmante e surpreendente demonstra quanto perdemos neste campo. O PIB dos países nórdicos, cuja população é de apenas 27 milhões de pessoas, gera um PIB superior a U$ 1,7 trilhão de dólares.
Teríamos que acrescentar a população da Suíça e da Holanda para chegar a 53 milhões de habitantes, mas aí o PIB total passa para 3,3 trilhões de dólares. É o que deixa de contribuir para a geração de riqueza no Brasil, a população equivalente prejudicada pela escolha criminosa de governantes que preferem manter estas disparidades e marginalizar essa enorme parcela da população brasileira.
Com sua visão global, acentuada pela visão adquirida com as múltiplas contribuições que fez no exílio a países de todos os continentes, Paulo Freire tinha plena consciência destes dados. Foi homenageado por políticos e universidades, mas falta-lhe o conforto de saber que existe esforço consciente para mudar esta situação. O que exigirá “tirar do papel” as diretrizes anunciadas em discursos e livros, e associar a necessária prática.
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